Chapéu Preto e noções de relevância

Muito se fala ou escreve sobre o Chapéu Preto. Por um lado, muitos consultores formados pela Tradição Clássica Chinesa (em especial a San-Yuan / 3 Ciclos) ignoram, negam ou não aceitam o Black Hat como um ramo do Feng Shui. Em contrapartida, os iniciados na Seita do Mestre Lin Yun simplesmente o consideram um Boddhisatva, na mesma escala do conhecido Dalai-Lama. Por conseguinte, antes de iniciarmos a nossa jornada, é sábio compreendermos as origens das dicotomias entre os chamados enfoques ancestrais e contemporâneos, bem como conhecermos a história das bases dessa Tradição tão divergente, mas também tão venerada.

A Viagem do Monge Ancestral

Nos tempos antigos, não existia uma separação clara entre as divisas do que hoje denominamos de Tibet, China e Índia. Assim sendo, é muito difícil definirmos com precisão qual a origem da Seita do Chapéu Preto. Já a lenda diz que Padma Sambava, um Grande Mestre Budista Indiano, ao chegar à região do Tibet/China, deparou-se com uma tradição xamânica de cunho magista chamada Bon; da fusão entre esse culto à Natureza e o Budismo Tibetano-Indiano surgiu as bases do Black Sect. Nesse período remoto, a escolástica budista se separou em diversas seitas (distinguidas popularmente pelo uso dos Chapéus Amarelo, Vermelho, Preto, etc, cada um com o seu próprio “Dalai-Lama”), que lutavam pela hegemonia político-religiosa na região (a China era considerada a milícia da época, mas a concentração do Poder encontrava-se no Tibet).

É interessante observar que, se por um lado, a maioria das tradições tibetanas procurava manter puras as conceituações doutrinárias, por outro, a seita negra já nascera eclética (a posterior fusão com o movimento sócio-cultural confucionista e filosófico taoista na China foi um exemplo desse ecletismo). E foi exatamente esse enfoque que, aliado à silenciosa mística que envolvia o discipulado, influiu para que pouco a pouco essa escola fosse sinônima de inacessibilidade, e por vezes, de culto demoníaco, aos olhos do povo comum.

Um Pequeno Grande Buda

Nas primeiras décadas do séc XX, Lin Yun, ainda uma criança, começa a frequentar um monastério budista. Além dos conhecimentos taoístas e confucionistas já vivenciados, ele tem contato com o universo ritualístico tibetano; os Mestres reconhecem-no como a reencarnação de uma das qualidades de Buda, e revelam a futura missão do garoto, como um importante canal para o renascimento de uma Antiga Tradição Tântrica.

Já maduro, Lin Yun sai da sua terra natal, fixando sua residência nos EUA; lá, ele reformula as bases da Seita Negra, e os relaciona com os antigos conceitos chineses de harmonização de espaços (Kan Yu), mas com um enfoque totalmente novo, não considerando a tradicionalíssima Luo Pan (bússola geomante), e incluindo técnicas de psicologia, simbolismo, visualização criativa, cognição e magia. Estava aberta a Escola de Feng Shui do Budismo Tântrico do Chapéu Preto.

Feng Shui: incensos, visualização e limpeza energética?

Antes de possíveis críticas, vamos analisar alguns pontos sobre o tema. O Chapéu Preto baseia-se num sincretismo religioso entre uma ramificação do Budismo (o tantrismo tibetano, rica em simbolismos e rituais de todos os tipos e finalidades) com uma seita magístico-xamânica de cunho secreto (em certo ponto, desconhecida até na sua terra natal). A relação com a sabedoria chinesa provavelmente ocorreu durante a evolução histórica dos impérios, já que o confucionismo, taoismo e posteriormente o budismo se revezavam de acordo com a Dinastia vigente na China.

É necessário ainda, observarmos o contexto sócio-cultural americano na época de Thomas Lin Yun. Nos anos 70, temos o movimento corbusiano em decadência e uma nova estética pós-moderna (estruturada no lema “novas maneiras de perceber o espaço” / “o kitsch revigorado”) ascendia no horizonte. As teorias jungianas são postas em prática, enquanto a semiologia é amplamente discutida nas universidades, e Grindler / Bangler publicam as primeiras teorias sobre a Programação Neurolinguística.

O fascínio pelo orientalismo também estava em voga na época, principalmente na parcela da sociedade ianque que buscava substituir a figura imperialista por um guru benevolente. Nesse quesito, Lin Yun foi realmente um mestre, pois conseguiu associar as necessidades explícitas no “American Zeit Geist” com a sua “formação mista” e melhor, sem ofender o culto à imagem, inerente ao ocidental. Visto por esse ângulo, a nova escola estabeleceu uma forma de linguagem figurativa, possibilitando, ao discípulo, organizar e separar o Sagrado do Profano pelo meio do Ritual (ou seja, o retorno ao mito da criação). A existência dessa Alquimia era comprovada pela matéria “transformada”, ou seja, o talismã simbólico maior, o Ba Gua.

A crítica relevante seria em termos semânticos. Assim considerando, a Seita do Chapéu Preto nada teria em comum com verdadeiro Feng Shui. As únicas referências (simbólicas e culturais) seriam o Wu Xing (os chamados 5 Elementos), Hou Tian Ba Gua (Os 8 números da Organização Celeste Posterior), alguns estudos genéricos da Tradição San-He e sobre o fluxo do Qi. Como já vimos em outros artigos, os conceitos de “Vento e Água” se relacionam com a matemática e a metafísica chinesa (destacando o taoísmo), e não com uma religião budista-tibetana. Temos então, muito mais do que uma generalização da palavra Feng Shui; a veiculação errada desse termo criou uma pseudo-identidade por demais esotérica, decorativa e muito longe da sua função real (talvez, por esse motivo, muitos estudiosos utilizam hoje a designação Kan Yu como sinônimo ao Feng Shui ancestral).

Concluindo, a importância (louvável, por sinal) da Escola Americana não se encontra na técnica do Feng Shui em si (aspecto que ela não enfoca), mas na “psicologia-ambiental” proposta, na otimização da vida simbólica pela aplicação do sagrado na organização cotidiana, como se fez nos templos tibetanos in illo tempore (em algum momento no tempo). Isto posto, caberia aos pesquisadores tradicionalistas estudar um pouco mais esse novo e instigante modelo antes de repugná-lo por imediato; e aos seguidores de Lin Yun, ter a mente aberta para enxergar possivelmente um simples e efêmero Basquiat em vez de um verdadeiro Picasso do Feng Shui. Bem, de qualquer maneira, até Jean-Michel teve sua poesia. E que bela poesia.

Por Marcos Murakami